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DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS EM XEQUE

26/05/2021

Por Wilson Campos



Não que precisasse, mas a pandemia da Covid-19 provocou o surgimento de um cenário tragicômico no Brasil, onde autoridades públicas abusam do autoritarismo e usam a caneta para decretar medidas absurdas, quase sempre contrárias ao que dispõe o texto constitucional, seja colocando em xeque os direitos e garantias fundamentais do indivíduo ou fazendo leitura rasa e interpretação distorcida.


A crise sanitária se somou às crises política, institucional, constitucional e econômica. Nessa composição de crises surgem as ameaças aos direitos fundamentais e à própria democracia. Daí a repercussão de questionamentos a respeito da solidez das instituições; da segurança jurídica em face da Constituição; dos riscos à democracia e do equilíbrio da economia.


Quase sempre alguém do povo clama por um artigo da Constituição (direito de ir e vir; direito à liberdade de expressão; direito ao livre exercício dos cultos religiosos; direito ao trabalho, ofício ou profissão; direito à livre iniciativa; entre outros). Mas será que o guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF), tem dado tratamento adequado à Carta Magna e tem atuado com isenção nos momentos de instabilidade ou de crises? Será que a Suprema Corte merece a confiança do povo brasileiro quando se trata de julgar crimes políticos, crimes de responsabilidade, crimes do governo paralelo e crimes contra os direitos e garantias fundamentais do cidadão?


Tendo em vista o protagonismo na mídia e o ativismo judicial recentes do STF, falando mais à imprensa do que nos autos, será que a Corte está apta a julgar todas as pessoas com foro de prerrogativa de função? Será que o STF tem se comportado adequadamente e tem se mostrado à altura para processar e julgar o Presidente da República; o Vice-Presidente da República; os membros do Congresso Nacional (81 senadores e 513 deputados); os Ministros do próprio Supremo Tribunal Federal (11 membros); o Procurador-Geral da República; os Ministros de Estado; os Comandantes das Forças Armadas; os membros dos Tribunais Superiores (STJ, TST, TSE e STM); os membros do Tribunal de Contas da União; e os chefes de missão diplomática de caráter permanente? Será que o atual Supremo se sairia bem no desempenho dessa missão?


Vale observar que essas perguntas não são para desmerecer ou desqualificar, mas tão somente porque se devem ao fato de que o STF tem cometido falhas terríveis em razão do seu ativismo judicial, das sentenças vazadas para a imprensa, das decisões erradas e das discussões e bate boca em público. Ou seja, raro é o dia em que os brasileiros dormem ou acordam sem que decisões polêmicas tenham sido tomadas por ministros da Corte.


Nesse sábado de Aleluia (3 de abril), mais uma decisão monocrática de um ministro do STF criou um clima tenso no mundo jurídico. Ainda enfrentando o terrível coronavírus, o país assistiu o ministro Kassio Nunes Marques decidir que igrejas e templos poderiam abrir as portas para a realização de celebrações religiosas, obedecendo o limite de 25% de capacidade do público. Esclareça-se que a decisão contrariou as medidas até então adotadas por alguns estados e municípios que determinaram a suspensão temporária de eventos com possíveis aglomerações de pessoas. A decisão do ministro Nunes Marques vai no sentido contrário de decisões recentes do plenário do Supremo, que reconheceu autonomia dos governadores e prefeitos para decretarem medidas de isolamento para o combate à pandemia.


Nunes Marques julgou a liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) impetrada pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), que sustentou que a suspensão dos cultos e missas viola o direito fundamental à liberdade religiosa e o princípio da laicidade estatal. O ministro destacou que a atividade religiosa é essencial. Asseverou, ainda, que diversas atividades essenciais continuam durante a pandemia, como o transporte coletivo, supermercados, farmácias, postos de gasolina, etc., fato que evidencia a inadequação de não permitir a celebração dos cultos e missas.


A decisão do ministro teve maior repercussão ainda com a resposta imediata do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, que ameaçou não seguir a decisão do ministro, com a seguinte mensagem nas redes sociais: “Em Belo Horizonte, acompanhamos o Plenário do Supremo Tribunal Federal. O que vale é o decreto do prefeito. Estão proibidos os cultos e missas presenciais”. No entanto, depois de pensar melhor na besteira que tinha falado, Kalil divulgou que iria obedecer a decisão do ministro Nunes Marques.


Já nessa segunda-feira (5 de abril), o assunto polêmico ficou ainda mais acalorado com a negativa do ministro Gilmar Mendes aos requerimentos do Conselho Nacional de Pastores do Brasil e do PSD Nacional, para derrubar o decreto do governo de São Paulo que vetou atividades religiosas coletivas presenciais durante as fases mais restritivas do plano de combate ao coronavírus. Mas, diversamente ao entendimento de Nunes Marques e após indeferir a liminar nas referidas demandas, Gilmar Mendes afetou, com urgência, a matéria ao Plenário da Corte Superior, objetivando uniformizar a questão. E tudo indica que o tema será debatido em votação no plenário do STF no decorrer da semana.


Acostumado aos holofotes da mídia, o ministro Gilmar Mendes propalou que “em um cenário tão devastador, é patente reconhecer que as medidas de restrição à realização de cultos coletivos, por mais duras que sejam, são não apenas adequadas, mas necessárias ao objetivo maior de realização da proteção da vida e do sistema de saúde”.


As decisões díspares dos dois ministros indicam uma batalha de argumentos a serem melhor defendidos no Plenário do Supremo, mas não sem antes causarem uma tremenda insegurança jurídica em situações que pareciam pacificadas na Corte. Todavia, em que pese a Lei 13.979/2020, editada para regulamentar as atividades durante a pandemia da Covid-19, permitir que estados e municípios, dentro de suas competências, possam restringir atividades, com escopo de salvaguardar vidas, isso não implica adotar dois pesos e duas medidas como têm adotado muitos prefeitos municipais, inclusive, o de Belo Horizonte.


Os bares e os restaurantes não podem trabalhar; o comércio não pode abrir suas portas; os negócios não podem funcionar; os cultos religiosos não podem ser realizados; as reuniões, mesmo que familiares, não podem acontecer; mas, na contramão disso tudo, os ônibus circulam lotados; os metrôs estão abarrotados; os supermercados estão cheios; as filas nas portas dos bancos são enormes; os times de futebol estão jogando o campeonato nos estádios; os aviões são verdadeiras latas de sardinhas, com passageiros colados uns aos outros; entre tantos maiores absurdos que comprovam dois pesos e duas medidas por parte dos governadores e dos prefeitos.


Como visto, os direitos e garantias fundamentais são a bola da vez e estão em xeque. Contudo, independentemente da necessidade dos cuidados sanitários e da obediência aos protocolos da área da saúde, com distanciamento, uso de álcool em gel e recomendação para lavar as mãos com água e sabão várias vezes ao dia, isso não quer dizer que abusos e retirada de direitos devam ser proclamados.


Se é para ser coerente e agir dentro da legalidade, então, por óbvio que, se um não pode, ninguém pode. O tratamento deve ser igual para todos. Usar dois pesos e duas medidas é ilegal, imoral e importa muito, ainda mais quando parte da sociedade está refém do medo, do desemprego e da fome. O decreto precisa valer para todos e não para uns como vem acontecendo em várias cidades e capitais, que são comandadas por prefeitos autoritários, arrogantes, boquirrotos, demagogos e oportunistas.


A Suprema Corte brasileira deu poderes demais aos prefeitos e eles agora agem como ditadores de republiquetas, mandando prender cidadãos de bem, fechar empresas e negócios, agredir homens e mulheres, e multar e humilhar os trabalhadores, principalmente os mais pobres, que precisam ir para as ruas vender picolé, água, pipoca, salgados, sanduíches, doces, verduras, frutas e demais produtos que representam o ganha pão e o sustento das famílias dessas pessoas.


Os prefeitos tiranos, que usam a caneta e a força bruta como armas contra os pobres, não procedem da mesma forma contra os ricos donos de empresas de ônibus, contra os gestores dos metrôs, contra os proprietários de supermercados, contra os diretores de bancos, contra os dirigentes de times de futebol, contra os administradores dos aeroportos ou contra as empresas de transporte aéreo.


Os direitos e garantias fundamentais estão em xeque, posto que muitos não podem trabalhar e se teimam são presos, enquanto outros trabalham normalmente e não sofrem quaisquer reprimendas. Onde está essa diferenciação na Constituição Federal? Em qual lei consta esse tratamento diferenciado e esse uso de dois pesos e duas medidas?


Os brasileiros não podem permitir que lhes tirem os direitos e a liberdade. Acima do STF, dos governadores e dos prefeitos está o povo, e com ele estão a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores do trabalho e da livre iniciativa.


Encerrando, deixo duas lições de grandes mestres para reflexão: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político” (Norberto Bobbio). “Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível para a quem tudo renuncia” (Jean-Jacques Rousseau).


Portanto, vamos juntos defender com unhas e dentes nossos direitos e garantias fundamentais e não vamos renunciar, jamais, à nossa liberdade.


Wilson Campos (Advogado/Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB-MG/Delegado de Prerrogativas da OAB-MG).

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